lembro também que esta foi a noite do naufrágio
um navio afundou em meio a tempestade
de manhã os pescadores com suas redes
tiraram os corpos dos marinheiros mortos da água
os pescadores colocaram os corpos na praia
e os cobriram com tapetes

uma louca morava em nossa aldeia
ela veio até a praia
e viu os corpos debaixo dos tapetes
ela gritou e saltou nos tapetes
e com uma careta horrível
fazendo uma careta horrível
ela começou a dançar, pisando em cima dos corpos
ela dançou fazendo uma careta horrível
e gargalhou sem parar

os pescadores, que ficaram olhando para ela,
pararam o trabalho deles e não a perturbaram

eu me lembro bem de ter ficado parado lá
assistindo a essa dança
mas ali perto, na arrebentação, eu ainda via
outros corpos entre as ondas
eles vestiam belas túnicas com faixas douradas nas mangas
rostos jovens e cabelos bem pretos
quando uma onda quebrava, o cabelo deles
caía graciosamente sobre suas testas
as cabeças dos mortos balançavam
lentamente de um lado a outro
se submetendo ao movimento das ondas

em uma onda, vi a silhueta de um homem bonito e tranquilo
nunca vi um homem mais belo e tranquilo
em minha vida nesta terra
de repente, o marinheiro morto falou comigo:
"está tudo bem,
tudo bem, não tenha medo de nada, tudo ficará bem"

a louca continuava a dançar sobre os cadáveres
e o jovem morto repousa sozinho entre as ondas
sussurrando: "está tudo bem, está tudo bem"
DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO (...)
mesmo quando lançado em circunstâncias
eternas
depoimento de um morto presente no filme Elegia Oriental do Sokurov